Deitas teu corpo em flor

DEITAS TEU CORPO em flor no campo claro
e toda ao sol te entregas, matinal.
Um perfume de luz se espalha qual
puro delírio, canto esquivo e raro.


Sorver o aroma, recolher o puro
estremecer de flor, ó pólen, ó mel
que irrompendo de tudo vibra em céu
de água a cair das coisas num futuro


instante de fantástica beleza
e de beijo e de afago e de um supremo
arfar de chama em límpida penugem.


Deitas teu corpo em flor, e a natureza
Funde-se em ti no alto silêncio extremo
de volúpia desfeita em brisa e nuvem.

A Todos os Poetas

A todos vós que um dia pressentistes
os passos alumbrados da poesia
na vossa alma soar — saudoso dia
que mais humanos, graves, e mais tristes


para sempre vos fez... A todos vós
que, amando, o amor sentistes impossível,
que, vendo o mundo, amastes o invisível,
e, ouvindo o canto, ouvistes nele a voz


de um reino imerso em névoa como clara
ilha na solidão... E deslumbrados
as palavras no vácuo erguestes para


reanimá-las e reacendê-las,
a todos vós o céu acolhe, consolados
pela luz da mais casta entre as estrelas.

Rota do Desconhecido

Quando eu seguir na rota do desconhecido
a minha voz ficará cantando na tua memória
e tua alma sentirá a presença
do meu sonho em teu sonho,
do meu riso de perdão à miséria do mundo.
Então, Amada, canta!
A noite se embalará com as canções marinhas
subindo, diretas, do teu coração.
Tua alma será, então uma praia branca,
onde cantarão os pescadores tristes:
os teus sonhos de amor abraçados ao desânimo...
Eu irei longe... Minha memória errará nas estrelas
e minha alma será o vento que acarinha plantas,
que acarinha flores sonolentas.


Eu irei longe, eu irei tão longe,
que meu coração vencerá distâncias
para ouvir tuas canções praieiras,
amada, grande Amada,
e minha alma será o céu pontilhado de estrelas
que há de fazer adormecer tua saudade!

Canto de Natal

A Criança que dorme
é tua e também minha.
Junto dela a grande noite
se apaga, e se avizinha


a madrugada santa,
com seus rumores castos...
E a Criança repousa,
e a Criança se esquece,


enquanto que no espaço
e no tempo se tece
a coroa de espinhos,
como um luar de sangue
sobre os altos caminhos.

Sequência

Os bois mugem para a grande
solidão que os agasalha.
(Os homens acham na paz
do campo a paz que apunhala.)


Os cães uivam para a lua
um uivo fino e ofegante.
(Os homens padecem a lua
e a dor em canto se expande.)


Os gatos choram na noite
como em fundo sofrimento.
(os homens padecem a noite
uma outra noite antevendo.)


As traças devoram a vida,
papirófagos sem pressa.
(os homens se dão aos livros
e a vida, como lhes pesa!)


Os ratos pelos armários
deixam apenas fragmentos.
(Os homens se dilaceram,
as próprias cinzas temendo.)


E a vida só se asserena,
se atenua, se aquieta,
quando num rosto cansado
sombra, apenas, se dispersa.

Quando eu disser adeus...

Quando eu disser adeus, amor, não diga
adeus também, mas sim um "até breve";
para que aquele que se afasta leve
uma esperança ao menos na fadiga


da grande, inconsolável despedida...
Quando eu disser adeus, amor, segrede
um "até mais" que ainda ilumine a vida
que no arquejo final vacila e cede.


Quando eu disser adeus, quando eu disser
adeus, mas um adeus já derradeiro,
que a sua voz me possa convencer


de que apenas eu parti primeiro,
que em breve irá, que nunca outra mulher
amou de amor mais puro e verdadeiro.

O poeta e o poema

Nenhum poema se faz de matéria abstrata.
É a carne, e seus suplícios,
ternuras,
alegrias,
é a carne, é o que ilumina a carne, a essência,
o luminoso e o opaco do poema.


Nenhum poema. Nenhum pode nascer do inexistente.
A vida é mais real que a realidade.
E em seus contrastes e seqüelas, funda
um reino onde pervagam
não a agonia de um, não o alvoroço
de outro,
mas o assombro de todos num caminho
estranho
como infinito corredor que ecoa
passos idos (de agora,
e de ontem e de sempre),
passos,
risos e choros — num reino
que nada tem de utópico, antes
mais duro do que rocha,
mais duro do que rocha da esperança
(do desespero?),
mais duro do que a nossa frágil carne,
nossa atônita alma,
— duros pesar de seu destino, duros
pesar de serem só a hora do sonho,
do sofrimento,
de indizível espanto,
e por fim um silêncio que arrepia
a epiderme do acaso:
E por fim um silêncio... Nenhum poema
se tece de irreais tormentos. Sempre
o que o verso contém é um fluir de sangue
no coração da vida,
no pobre coração da vida, aqui
paralisado, além
nascente no seu ímpeto de febre,
no coração da vida,
no coração da vida,
(da morte?)
e um frio antigo, e as bocas
cerradas, olhos cegos,
canto urdido de cantos sufocados,
e uma avenida longa, longa, longa,
e a noite,
e a noite,
e, talvez, um sublime amanhecer.


(...)


Não há poema isento.
Há é o homem.
Há é o homem e o poema.
Fundidos.

Ária ao violão

Que sonâmbula campânula
embala o íncola na ínsula
campanulando?


Cantagalo cantagálico
no áulico tez gaulesa
cantagalando.


Só, na sombra solitária
estrelinha latejante
é chama, é flor, e madruga
num rio que ri ou geme,
campanulando.


Sobre a memória madura
a cálida, a alva aurora
desce doce se incorpando,
campanulando.

Boca temporã

A boca temporã, nessa risada
matinal, descuidosa, a linda boca
fresca de céu, perdidamente louca
pelo desejo apenas esmagada...


Nela respira ingénua madrugada,
a carne azul dos campos mal dormidos,
rios, aguadas, vila despertada
pelos ventos do alto, comovidos...


Nessa boca que aos poucos madurando
se oferece na árvore travessa,
vejo dormir as frutas assustadas,


as frutas sumarentas despontando.
Agasalhar no colo essa cabeça,
depois sair sonhando nas estradas.